quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Amigos, amigos, seqüestros à parte

Um dos principais motivos pelos quais o caso Eloá ganhou proporções enormes foi por ter deixado claro o quanto as pessoas se tornaram individualistas e egoístas. Não quer acabar o namoro? Seqüestre sua namorada. Sua filha não pára de chorar? Esgane-a. Apertou muito forte e acha que ela morreu? Faça parecer um acidente e a jogue da janela. Quer a herança dos seus pais? Mate-os dormindo, talvez eles não sintam dor. E você ainda vai virar uma celebridade, com direito a página no Wikipédia, como se fosse digno de entrar para história.

Encontrar a solução para os próprios problemas ou livrar-se deles é a palavra de ordem atual, não importa que impacto tenha na vida dos outros. Se para ficar com sua namorada, Lindemberg teria que pôr uma arma em sua cabeça, foi exatamente isso que ele faria para resolver o problema e, ao menos durante o seqüestro, os dois estariam juntos.

Por que todos têm a necessidade de encontrar um culpado, se a culpa está claramente dividida entre todos? Basta ler as entrelinhas: o pai de Eloá, que deveria ensinar bons valores a ela, era um matador de aluguel e estava executando o interesse de outras pessoas; Eloá "aprendeu bem a lição" do pai e já tinha ameaçado o namorado com uma faca; e o GATE, mais preocupado com a própria reputação, não tomou a decisão óbvia. Cada um tem sua parcela de culpa, por ter agido de forma egoísta em alguma parte do processo.

Encontrar esse culpado seria muito mais fácil do que encarar a simples realidade: a maioria das pessoas está muito voltada para os seus próprios interesses e mudar tal comportamento seria uma empreitada complexa demais. O inferno são os outros, como diria Sartre, e encontrar o culpado atenderia ao interesse de todos, deixando o inferno bem longe.

Tal individualismo é percebido até mesmo entre as comunidades criadas no Orkut em homenagem a Eloá e Nayara. A solidariedade está apenas no título das comunidades, pois tópicos totalmente superficiais como "Beija ou passa?", pra tentar eskecer o luto! (sic.) ou "O q acha da pessoa acima = atitude ou silêncio???" são os mais disputados, com até 2300 comentários. Então fica claro que para ser "solidário" hoje, basta entrar numa comunidade online e Deus nos perdoará do egoísmo de cada dia.

Clique no player abaixo e ouça as impressões de Rauf Abbud – que tem a mesma idade de Eloá e Nayara – sobre o seqüestro de Santo André. Pelo menos o garoto se envolveria na situação se fosse a família dele envolvida. Já se fosse só um amigo...



Rauf - Entrevista

Amigos, amigos, sequestros à parte

Por problemas na postagem acima, permanece esse link para a entrevista.



Rauf - Entrevista

O show da mídia

Sem mais janela para espiar depois do desfecho desastrado do famigerado seqüestro de Santo André, a imprensa agora se lança na caça aos culpados. O candidato mais cotado no momento é a polícia de São Paulo. Questionam a sua competência, seus métodos, suas ações (ou a falta delas). Porém esse escrutínio todo deixou de lado uma das figuras chave do circo todo: a própria imprensa.

O caso Santo André se tornou problema de todos nós através de uma cobertura que tinha pouco de jornalística e muito de reality show. As câmeras indiscretas das principais redes de TV do Brasil invadiram o cárcere privado de modo que todos nós também pudéssemos “dar uma espiadinha”.

Há que se questionar até que ponto essa intromissão da imprensa é legítima. O artigo 7º, inciso IV, do
Código de Ética dos Jornalistas diz o seguinte:

“O jornalista não pode:

IV – expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicações de locais de trabalho ou residência ou quaisquer outros sinais”.

A esta altura, depois do circo de mau gosto que foi o caso Isabella Nardoni, a audiência parece estar um pouco mais vigilante quanto aos abusos da mídia. Na blogosfera e em comunidades na web, as pessoas estão começando a se perguntar se o que a imprensa está prestando é serviço ou desserviço.

O
Observatório da imprensa, espaço tradicional de esculhambação da mídia, não perdeu tempo e dedicou toda uma sessão do seu Jornal de Debates para execrar a ação da imprensa, principalmente as emissoras de TV.

A baixaria em si ficou por conta do Orkut, que nos deu acesso aos perfis de Eloá (já apagado), Nayara e Lindemberg. Comunidades de luto e de ódio foram criadas por pessoas que, com a sensação de proximidade forjada pela cobertura televisiva, já se sentiam amigos virtuais dos envolvidos no caso.

A tecnologia permitiu até níveis mais exacerbados de mau gosto. É o caso desse
joguinho em flash que permite aos expectadores fazerem vingança com as próprias mãos e metralharem Lindemberg.

Quanto à grande imprensa, é recomendável que dirigentes da Globo, da Record e da Rede TV! dêem uma revisada básica nesse Código de Ética - que não é nem muito longo – antes de se meterem a negociar com seqüestradores desequilibrados. Até José Luiz Datena concorda. O apresentador e polemista criticou no ar em seu programa Brasil Urgente as emissoras que transmitiram entrevistas feitas por telefone com o seqüestrador. Em entrevista ao Terra Magazine ele reforça sua opinião de que a mídia teve um papel importante no desfecho trágico do seqüestro.

Ora, as coisas devem estar bem erradas em uma situação em que o Datena é a figura com bom senso.

 Anna Lisbôa - Caso Santo André